Permaneço virada para a janela e observo lentamente a lua a desaparecer, embora
ainda não haja sinais dos primeiros raios de luz. Tento abstrair-me das imagens distantes, mas
ainda precisas, que teimam em invadir os pensamentos de uma adolescente dramática,
enquanto o meu cérebro suplica para que feche os olhos e apenas as deixe espairecer.
Embora contrariada, o desejo de fugir da realidade, refugiando-me nas intensas
memórias passadas, apodera-se de mim. Quando dou por mim, não vejo nada, a não ser a
escuridão melancólica do vazio de uma ilusão. Neste momento, nem o brilho ofuscante das
estrelas, momentos antes, visíveis no negro imponente da noite, consegue penetrar o tenso
espírito que acaba de partir para o interior da minha mente. Subitamente, um foco de luz
brilhante confunde-me a visão e, mesmo não sendo tocada, apercebo-me de ser puxada na
sua direção.
A grande cama em que há pouco me deixara repousar dá agora lugar a um amplo
recinto coberto por finos grãos de areia, tão vasto quanto um razoável salão de festas. Em
frente, ergue-se um humilde edifício lotado de pequenas crianças ingénuas e animadas,
saciadas pela liberdade prazerosa de escapar ao domínio e ao controlo de adultos obstinados
e taciturnos. Apercebo-me de que ainda estou imóvel no lar que me é conhecido, e que os
meus olhos, deveras enfraquecidos, continuam selados, mas a fantasia com que me deparo é
a mais nítida e tentadora que já conseguira reviver. Vejo as noites e os dias a passarem à
velocidade da luz, sinto-me a aproximar-me daquela areia tão volumosa… Porém, os meus
pequenos braços não me permitem alcançá-la sem me esforçar. Já não tenho longos e lisos
fios loiros a tocarem-me nos cotovelos, mas uma pequena minoria a sobrepor-se no meu
campo de visão reduzido e, no meu rosto, agora quase perfeito, estampa-se um esbelto
sorriso jovial e radiante.
Caminho ao longo do terreno sem um destino concreto definido, estou inquieta e
receosa pelo facto de a minha única companhia ser a solidão, até que, de repente, uma
palma no ar, particularmente amigável, apela à minha atenção. Dirijo-me para si, numa
tentativa falhada de reconhecer o rosto afável que me aborda, visto que, em tal espaço, nada
nem ninguém me são conhecidos. Observo minuciosamente cada detalhe desta linda rapariga
morena. O seu rosto é ligeiramente oval com destaque para o visível bronze que apanhou, e
está repleta de delicados caracóis curtos, muito volumosos, que lhe cobrem parte da cara,
saltitando a cada breve movimento que realiza. O abismo dos seus belos olhos castanhos
encara-me intensamente com brilho cheios de euforia e esperança, certamente a tentar
decifrar a minha complexa expressão facial. Aproxima-se lentamente de mim, parecendo
estudar cada pensamento que me ocorre à medida que se desloca para mais perto, como se
estes estivessem a passar um a um num letreiro luminoso incorporado na minha testa.
Convida-me a juntar-me a ela, talvez por também se sentir sozinha. Por isso, esboço um lindo
sorriso em resposta ao seu convite. Sento-me, acomodando-me num espaço de areia
disponível, próximo da rapariga de cabelo encaracolado, quando dou de caras com a presença
de outra menina. Aparecida detrás da capela ao lado do pavimento, transporta uma mão
cheia de areia molhada com uma finalidade, pelo menos para mim, desconhecida. A florida
bandolete multicolor segura o seu cabelo liso e acastanhado, impedindo-o de balançar bem à
frente dos seus olhos cor de avelã. Alguns dos seus dentes da frente persistem em ficar
notoriamente salientes enquanto esta esboça milhares de sorrisos genuinamente alegres a
todos os que a abordam. Apresenta-se com um abraço aconchegante e estranhamente
reconfortante, ainda que meio acanhada, encostando-se a mim no minúsculo lugar que resta.
É a mais baixa das três, embora perceba, pela tranquilidade da conversa entre as duas, que a
sua amizade já perdura por dias, verificando, assim, estar por minha conta.
O punhado de areia molhada, há pouco trazido nas mãos da menina mais baixa, faz
agora parte de outros tantos, empilhados e moldados estrategicamente, na forma de uma
pirâmide praticamente do meu tamanho. Olho em volta, e só assim noto a abrangência desta
brincadeira por toda a caixa de areia, cheia de crianças agarradas à ideia de terem a maior
construção; de buracos, molhos e diversidade de jogos entre todos; de amigos e amigas que
se aproximam ao mesmo tempo que se riem das desgraças uns dos outros. Quando dou por
mim, estamos as três a brincar assim como os restantes que nos rodeiam. Vamos
acrescentando altura ao monte, que cresce cada vez mais em frente aos nossos olhos, até
precisarmos de nos pôr em bicos de pés para alcançarmos o topo; a rapariga morena faz
piadas e adivinhas para nos entreter, fazendo-nos rir às gargalhadas como se nos
conhecêssemos há meses, enquanto a menina mais baixa, embora ainda um pouco tímida, se
revela muito doce e prestável.
Tudo o que sinto é a paz e a alegria de ser criança e rir sem pensar no futuro e nas
dificuldades que este me reserva, sem a cabeça a mil à hora por dia e sem preocupações com
opiniões posteriores. Sem ter que me sufocar a enumerar as dezenas de coisas que já podia
ter feito enquanto descanso, sem a desconfiança constante em quem está ao nosso lado pelas
melhores razões e sem o transtorno de ser uma adolescente em pleno caótico século XXI. Ser
criança é o sonho de qualquer jovem hoje em dia, um desejo tão melancólico, talvez por não
passar disso mesmo, um sonho.
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